À Beira Mar

À Beira do Mar

O sol se despedia, dissolvendo-se em tons de ouro e cobre. O vento trazia o perfume salgado do mar, e o som das ondas marcava o compasso da tarde. Eu caminhava devagar, sentindo cada grão de areia moldar-se sob meus pés.

Foi então que vi Caio.
As roupas gastas e o rosto vincado pelo tempo contavam histórias sem palavras. Ele andava inquieto, passos rápidos e irregulares, o olhar varrendo o entorno como quem vigia algo invisível — ou como quem foge de si mesmo. Havia nos olhos turvos sinais de que estava alterado. Aproximou-se sem cerimônia, pediu uma esmola, e eu lhe dei. Em troca, despejou palavras ásperas, como se jogasse pedras no ar. Falou da vida que levava, das lutas e da revolta contra todos. A vibração era tão pesada que minha voz se calou. Apenas o ouvi, sentindo o peso escorrer das frases. Partiu com passos apressados, levando consigo a tempestade que carregava no peito.

O dia seguiu, e fui à república de Selina uma colega de faculdade onde meus filhos estavam hospedados. A cada passo em direção à porta, senti aquele velho misto de ansiedade e alegria — a expectativa de ouvir suas vozes, de vê-los sorrindo ao me receber. Almoçamos juntos, e a mesa foi tomada por risos e conversas sobre sua entrada na faculdade — eles me contavam como era o ambiente de estudos, as matérias, os professores, os trabalhos. Enquanto falavam, eu os observava com orgulho silencioso, lembrando de quando eram pequenos, correndo pela casa com os cadernos abertos, cheios de desenhos e rabiscos. Agora, estavam ali, caminhando por seus próprios caminhos, e eu, como pai, sentia que cada conquista deles também era um pedaço da minha. Foi um intervalo de aconchego, como se o calor familiar lavasse o espírito das sombras que eu havia encontrado mais cedo.

Ao final da tarde, quase noite, decidimos passear na orla.
O vento vinha fresco e úmido, a maresia roçando o rosto. Enquanto eles desciam para caminhar junto à água, sentei-me num banco voltado para o horizonte, deixando que o som das ondas limpasse pensamentos e memórias.

Foi então que Elias se aproximou.
Sentou-se ao meu lado e começou a falar, com voz cansada:
— Eu não tenho paz. Já fui a tantas igrejas, tantos templos… nada me acalma. Estou longe da minha família. Sou alcoólatra. Meus filhos me expulsaram. — Respirou fundo.
— Um dia mexi com uma oferenda… desde então, vejo vultos o tempo todo. Eles não me deixam em paz.

Antes que eu respondesse, senti a presença firme e serena do meu mentor espiritual, como se estivesse logo atrás de mim.
Ele olhou para o homem e disse:
— Vamos até a beira do mar?

Descemos juntos, até que a espuma tocasse nossos pés. Elias comentou com uma pergunta irônica se iriamos pular sete ondas, como quem agarra um último fio de esperança. Mas, antes que ele se movesse, meu mentor pediu licença e guiou minha mão até sua testa.

Assim que toquei, algo nele se rompeu. A cabeça começou a chacoalhar com violência, como se o corpo recebesse descargas de luz e sombra ao mesmo tempo. Os músculos se contraíam e relaxavam em ondas rápidas. No ar, o cheiro de maresia se misturou a algo antigo e pesado — como poeira de um lugar fechado há anos. Pela visão espiritual, vi vultos se retorcendo e se desfazendo na espuma, arrastados pelo abraço gelado do mar. Cada onda que batia parecia arrancar mais um fragmento do que o aprisionava, até que tudo cessou.

Ele respirou fundo; a tensão no rosto se desfez como nuvem ao vento. Olhei em seus olhos e disse:
— Volte para a sua família. Retome o trabalho. E, acima de tudo, não beba como se o mundo fosse acabar.

Houve um silêncio carregado. Então, ele me fitou com um misto de surpresa e revelação:
— Obrigado… você é filho de mãe…

A frase ficou suspensa no ar. Uma luz surgiu que cortou o céu, iluminando a noite e o nosso redor como se fosse dia. Por um instante, tudo pareceu imóvel — e percebi que ele havia tocado um ponto preciso da minha origem, algo que poucos poderiam saber, um desvelo místico.

Entendi, então, a diferença entre os dois andarilhos.
Caio vagava sem saber o que buscava — e, por isso, não sabia pedir ajuda.
Elias, embora ferido, sabia pedir. Sua alma já estendia a mão para o invisível.

Porque o pedido sincero é como uma porta entre o visível e o invisível — abre-se apenas quando a chave é a verdade do coração. E, quando isso acontece, o universo inteiro se move para responder, como a terra que cede ao toque da água e se deixa transformar em vida.

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