Era uma quarta-feira à tarde, num bairro periférico da Grande São Paulo, marcado por ladeiras tortas, ruas estreitas e calçamento gasto. A pressa do mundo passava ali, mas não entrava. Quem cruzava o portão da casa de Dona Zeza percebia logo: o tempo ali obedecia outras regras. Era como se o relógio tirasse o sapato, sentasse, e esperasse.
A casa, simples mas viva, era feita de tijolos baianos à mostra, piso de cimento frio e alma quente. Dois andares davam conta de abrigar até quarenta pessoas — corpo, espírito e tudo mais. Embaixo, vivia Dona Zeza, filha de Omulu, mulher de fala mansa e olho firme, médium velha-guarda e dona do terreiro.
No andar de cima, o salão de giras. Um espaço amplo, arejado por janelas sempre abertas, com um congá repleto de santos, santas, guias e velas. Ali, a energia não era metáfora: ela pulsava. Vibrava no ar como tambor ancestral, em sintonia com o que é sagrado, com o invisível, com os encantados. A força espiritual era sentida no alto da cabeça — entrava suave, como se estrelas minúsculas de luz se derramassem sobre a coroa de cada um. O salão era mais que um cômodo — era um campo de força, onde o sagrado tocava a pele e as entidades baixavam como quem volta pra casa.
Na base da escada, uma tronqueira de metal marcava o limite invisível entre o comum e o sagrado. Era a casa do guardião — firme, silenciosa, viva. Sobre ela, velas acesas tremeluziam, garrafas de bebida se alinhavam entre armações de ferro cruzadas, e o cheiro de marafo e fumaça criava um corredor de respeito. Ali ninguém passava direto. Todos batiam palmas antes de atravessar, como quem anuncia chegada, pede licença e reconhece que está entrando em outro território — o dos espíritos da luz e dos caminhos guardados.
Lindinha, jovem atenta e firme, era quem cuidava da passagem. Sentada ao lado da entrada, distribuía senhas e orientava os visitantes com voz segura. Perguntava com qual médium cada um iria passar, anotava nomes, organizava a fila, zelava pela ordem. Para os que vinham pela primeira vez, explicava os rituais com calma: como entrar e sair do congá, a reverência com as mãos antes de adentrar, o gesto de gratidão ao sair. “Nunca dê as costas pro congá,” dizia. “Saia de frente, olhando, agradecendo.”
Mais do que recepção, era rito. Lindinha era a guardiã da travessia, garantindo que ninguém pisasse naquele chão sem a devida atenção e reverência. A partir dali, o terreiro já não era só um espaço físico — era chão sagrado, onde o invisível começava a se mostrar.
Ao subir as escadas, Mariazinha sentiu que cada degrau era mais que uma estrutura de cimento — era uma ponte entre mundos. Com cada passo, deixava para trás o peso do cotidiano e se aproximava de algo maior, mais antigo. O cheiro das ervas queimadas misturava-se à fumaça do charuto, formando espirais lentas, douradas, que pareciam desenhar no ar símbolos invisíveis de cura e proteção.
Nos cantos dos degraus, vasos de arruda, guiné, alecrim e outras ervas rezadas exalavam um frescor denso, vivo. Era como se mãos de caboclos invisíveis estivessem ali, em silêncio, varrendo a poeira da alma, limpando o campo, desfazendo os nós. A cada andar vencido, Mariazinha sentia o corpo mais leve — e o espírito, mais desperto. A escada não era só caminho: era preparação. Ritual em movimento. Tudo ali parecia saber que ela chegava.
Entre o Céu e a Terra: o sussurro do divino nas palavras simples
A gira começou com uma oração católica, daquelas que atravessam gerações e grudam na alma desde a infância. Mas ali, no terreiro, a prece ganhava outro peso. Não era apenas repetição de palavras conhecidas — era chave de acesso. A simplicidade da oração se misturava ao mistério do invisível, abrindo espaço para o sagrado operar.
“Santo Anjo do Senhor,
meu zeloso guardador,
se a ti me confiou a piedade divina,
sempre me rege, guarda, governa e ilumina. Amém.”
Enquanto as vozes recitavam em uníssono, o ar mudava de densidade. Era como se o tempo desacelerasse por respeito. A vibração da oração se espalhava pelo ambiente, alinhando corpos, pensamentos e corações. A conexão estava feita. O espiritual já estava entre eles, silencioso e presente, esperando apenas o chamado certo para se manifestar.
O Sagrado Começa com Escuta
Quando as últimas palavras da oração se dissiparam pelo salão, um silêncio denso se instalou. Não era ausência de som — era presença de algo maior. Foi então que Dona Zeza, com sua postura firme, ergueu as mãos com as palmas para cima.
— Meus filhos, aqui é chão sagrado. Aqui o tempo se desfaz e o espaço se abre. Aqui não se corre — aqui se sente. Não há pressa no espírito, nem limite no amor. Viemos para curar, sim. Mas também para lembrar quem somos.
Fez uma pausa breve. As velas tremeluziam. O silêncio prestava atenção.
— O que vocês trazem de dores ou problemas… é isso que precisa ser trabalhado. O dinheiro, os bens, o peso do mundo — tudo isso é véu que encobre o sagrado. Não fazem parte da essência. O que importa de verdade são as escolhas. O jeito como você fala, como você cuida, como você reage e encara a vida. O que você oferece quando o outro não tem nada. Isso é o que fica. Isso é o que conta.
Olhou em volta. Ninguém piscava.
— Tempos difíceis sempre vêm. Mas sofrimento não precisa ser castigo. Se acolher o que sente, se tiver coragem de olhar para dentro, vai ver que até a dor ensina. O aprendizado é presente — só que embrulhado no avesso.
Mais do que palavras, era ensinamento vivo. A gira não tinha só começado. Ela já estava ensinando.
Entre a Dúvida e a Esperança
Mariazinha se aproximou devagar. A pele arrepiada, as mãos úmidas, o coração apertado no peito. Parou diante do médium José — ou Seu Zé, como todos o chamavam ali com carinho e respeito —, um dos trabalhadores mais antigos da casa. Era conhecido não só pela sua dedicação e empenho na casa, mas pela história que carregava: ele mesmo havia chegado ali em frangalhos, depois de um relacionamento rompido e uma tentativa de desistir da vida. Encontrou naquela casinha simples uma luz que jamais esperava encontrar — ainda mais vindo de uma fé cristã rígida, que não lhe deixava espaço para cultuar o sagrado que agora pulsava ali.
Mariazinha olhou para o chão por um instante, depois ergueu os olhos marejados. A voz saiu trêmula, mas sincera.
— Seu Zé… eu venho sem saber o que fazer. Meus dias estão tão apertados… parece que tudo me empurra pra longe da paz. E o meu dinheiro… mal dá pro que preciso. Eu sei que o senhor que me atende tem tanta gente pra ajudar… às vezes sinto solidão e que ninguém nem me escuta mais. Eu não sei se o que fazer.
A última frase veio como um sussurro, quase engolida pela vergonha — mas foi dita. Ali, diante do terreiro, das velas e das entidades que escutam o que nem sempre conseguimos dizer.
Seu José, incorporado em Pena Branca, sorriu com aquela calma de quem já viu muita coisa — e sobreviveu. Seus olhos, iluminados pela dança branda das velas, refletiam pontos de luz como estrelas perdidas num céu de terreiro. Olhou para Mariazinha com ternura firme, daquelas que acolhem sem passar a mão por cima.
— Mariazinha… o pataco que você tem é o que teu bolso aguenta carregar. Mas o que importa mesmo é o que você faz com ele. E não tô falando só de dinheiro, não, menina.
Fez uma pausa breve. O silêncio ao redor parecia concordar.
— Cada escolha, cada gesto, cada palavra tua… tudo isso é moeda no mundo espiritual. Tudo tem peso. Tudo tem retorno. São como sementes jogadas no vento. Algumas pegam, outras voam longe, algumas nem brotam — mas nenhuma é em vão. Cada uma cumpre seu papel no ciclo da vida. E é nesse ciclo que você precisa confiar.
José se inclinou levemente, os olhos ainda fixos nela.
— A vida não se mede pelo que se tem, Mariazinha. Se mede pelo que se doa. Pela intenção. Pela coragem de continuar, mesmo sem certeza. Porque o que você semeia — em amor, em esforço, em cuidado — sempre volta. Às vezes como flor, às vezes como sombra, mas sempre volta.
Quando o Atabaque Fala, o Espírito Responde
No meio da gira, algo mudou.
A atmosfera se adensou como bruma quente. O ar ficou pesado e leve ao mesmo tempo, como se um véu invisível fosse erguido entre dois mundos. Os olhos viam o mesmo salão, mas o coração sabia: o espiritual tinha se manifestado.
Foi então que o ponto começou. Vozes firmes puxaram o cântico com o peso da tradição e a força do agora. Não era apenas canto — era chamada. Ordem. Convocação.
Oxalá mandou,
Oxalá mandou, ele mandou buscar
Os caboclos da jurema, lá na jurema
Oxalá mandou… (Bis)
Pai Oxalá é rei do mundo inteiro
Mandou ordens pra jurema
Mandar seus capangueiros
Mandai, mandai minha cabocla jurema
Os seus guerreiros,
essa é a ordem suprema!
O atabaque respondeu como se entendesse cada palavra. Não apenas acompanhava — guiava. Cada batida era um chamado ancestral, como o coração da terra vibrando sob os pés. Era mais do que música. Era magia viva.
Seu Pena Branca assobiava baixo, os olhos fechados, e seu assobio parecia vento entre folhas — um sussurro antigo que atravessava matas e tempos. Era o som do invisível se apresentando.
Mariazinha, ali de pé, com as mãos trêmulas, sentia tudo. A vibração da música não parava no ouvido — atravessava pele, ressoava no osso, atingia a alma. Cada nota era uma linha de luz acesa dentro do seu corpo, ligando-a ao espírito dos caboclos como se fossem fios invisíveis.
A música não ficava no salão. Transbordava. Tomava o alto da cabeça e se espalhava pelos campos sutis, como ponte viva entre o céu e a terra. Entre o visível e o invisível. Ali, naquele instante, tudo estava conectado — e ninguém saía dali do mesmo jeito que entrou.
Os médiuns começaram a incorporar os caboclos. Era como se a mata inteira tivesse entrado no salão. Seus corpos se moviam com a sabedoria da natureza: braços balançavam como galhos ao vento, pés firmes como raízes cravadas no chão sagrado. Os sons, os cantos, os gestos — tudo ali era linguagem do invisível.
A energia da floresta emanava de cada um. O salão parecia respirar junto com os caboclos. E Mariazinha… Mariazinha sentiu o ar mudar de textura. Era como se estivesse mergulhada em luz líquida. Não via com os olhos, mas sentia com o corpo: uma força viva, amorosa e firme a atravessava, preenchendo o que antes estava vazio.
Foi então que José, agora tomado pelo seu caboclo, Pena Branca, aproximou-se. Em uma das mãos, o charuto aceso. A brasa vibrava como um olho vermelho de fogo. Ele começou o descarrego.
Assobiava baixo, constante, como o som do vento cortando os cipós. A fumaça subia em espirais lentas, envolvendo Mariazinha como neblina de mata ao amanhecer. Não era agressiva, mas também não pedia licença — ela limpava. Passava por cima da cabeça, pelo peito, pelas mãos cansadas, pelas costas curvadas de quem carrega o mundo.
— Sai tristeza… sai mágoa… tudo que não te pertence… — disse o caboclo, com voz grave e melódica, que mais parecia um cântico ancestral. Palavras que não vinham só da boca — vinham da terra, dos troncos, do tempo.
Algo denso se desprendeu de Mariazinha. Um peso antigo, quase esquecido, que ela nem sabia mais nomear. E então, no lugar do vazio, veio o calor. A energia voltou a pulsar — quente, clara, viva. Como o primeiro sol da manhã atravessando a copa das árvores.
E ali, no meio da gira, entre o tambor, a fumaça e o silêncio da alma, ela começou a lembrar quem era.
Fé que não se cobra, mas se cultiva
Pena Branca olhou para Mariazinha com serenidade profunda, como quem enxerga além do que os olhos mostram. Seu semblante carregava a firmeza da floresta e a doçura de um rio calmo. Quando falou, sua voz era como brisa em tarde quente — mansa, mas carregada de força:
— Mariazinha… cada falange que atua neste terreiro é como os dedos de Deus. Cada uma com sua missão, sua força, seu jeito de trabalhar. Mas todas guiadas pelo mesmo princípio: amor e caridade. É assim que a gira acontece. É assim que o espírito desce e a cura se manifesta.
Ela escutava com os olhos arregalados, como se finalmente algo dentro dela começasse a se encaixar.
— Aqui, minha filha, não se cobra nada. A energia circula livre, como o vento que não tem dono. Mas tudo que vem do coração é bem-vindo: uma vela, uma flor, uma mão que ajuda a varrer o chão depois da gira. Isso é oferenda também. Isso é oração em movimento. Tudo isso ajuda a manter essa casa de pé, viva, protegida.
Pena Branca se aproximou um pouco mais, e sua voz mais suave.
— A verdadeira abundância, Mariazinha, não se mede com dinheiro. Se cultiva no coração. Porque o que a gente oferece ao mundo — em bondade, em esforço, em verdade — sempre volta. Talvez não da forma que esperamos, mas da forma que precisamos. E é assim que a vida ensina: passo por passo, gesto por gesto.
O Terreiro Respira por Muitos Nomes
A cada semana, uma falange diferente comandava a gira — cada qual sob a regência de um orixá, com sua força única, seu jeito de ensinar, curar e guiar. Era como se a casa se abrisse para diferentes ventos sagrados: ora a firmeza guerreira de Ogum, ora a doçura compassiva de Oxum, ora o silêncio profundo de Omulu. E muitas vezes, como naquela noite, o comando vinha de Oxalá — o orixá da criação, da luz e da serenidade, considerado o pai de todos os orixás, aquele que organiza o mundo com calma e sabedoria.
Com os orixás, vinham também as falanges que os representavam. Os caboclos, espíritos de ancestrais indígenas, chegavam com passos firmes e olhar afiado. Eram médicos da mata, guerreiros da palavra reta, guias que falavam pouco, mas diziam muito. Suas presenças traziam limpeza, força e direção. A cada gira, cada caboclo carregava um sopro da floresta dentro de si.
E naquela noite, a força da Jurema se manifestava com clareza. A Jurema é uma linha espiritual ligada aos encantados, mestres e caboclos que atuam com grande delicadeza e poder. Mistura saber indígena, tradição afro-brasileira e elementos do catolicismo popular. Quando um ponto da Jurema ecoava no terreiro, era sinal de que as palavras seriam remédio e os olhos, espelho.
Apesar das linhas variarem, a casa tinha uma só guardiã: Dona Zeza, filha de Omulu — orixá das curas profundas, das doenças que ensinam, da morte que transforma. Ser filho de um orixá é mais que devoção: é uma ligação de alma. É carregar no corpo espiritual as marcas daquela força. No caso de Dona Zeza, isso se revelava na compostura firme, no olhar que atravessava, no silêncio que sustentava.
Ela era o alicerce invisível da casa. Como mediadora entre os mundos, mantinha o equilíbrio das energias, guiava os trabalhos, segurava o fio entre o visível e o invisível. A gira podia mudar de ritmo, de linha, de orixá — mas o terreiro, como um altar vivo, sempre respirava no compasso de Dona Zeza que cumpria a sua missão de dirigente espiritual.
Entre a Morte e a Mata, Nasceu Pena Branca
O sorriso de Pena Branca veio antes das palavras. Era um sorriso manso, mas cheio de tempo — como quem carrega muitas vidas nas costas e já aprendeu a ouvir antes de falar. Seus olhos, profundos como lago antigo, fixaram-se em Mariazinha com ternura e firmeza.
— Filha… antes de ser caboclo, eu fui homem. Lá pelos tempos de 1850. Tive nome, casa, trabalho. Mas também tive ambições demais e ilusões que me cegaram. Caminhei feito rei em estrada de barro, achando que podia tudo… e perdi quase tudo. Quando a morte chegou, eu estava cansado, cheio de peso que nem sabia que carregava.
Fez uma breve pausa. O tambor batia mais lento, como se escutasse também.
— Mas não fui deixado de lado. Fui resgatado. Vieram seres que não se pareciam com nada que eu conhecia — luzes em forma de gente, brilho que não feria os olhos. Me levaram para um lugar diferente. Uma praça silenciosa, com árvores muito altas e pássaros que cantavam como se rezassem. Ali, o tempo não corria. Ele cuidava.
Mariazinha ouvia com o corpo inteiro, olhos úmidos e peito aberto.
— Foi nesse lugar que Ele apareceu. Um espírito alto, porte de guerreiro, usando calças brancas, colares no peito e um cocar colorido que parecia conter o céu inteiro. Ele olhou dentro de mim — e eu entendi tudo sem uma palavra. Foi Ele quem disse: ‘Agora, você é o Caboclo Pena Branca entre muitos. Vai servir. Vai limpar o que sujou. Vai ensinar o que não soube viver.’
Silêncio.
Pena Branca respirou fundo, e sua voz ganhou o peso de terra molhada:
— E aqui estou, Mariazinha. Reencarnado no trabalho, não no corpo. Em cada gira, reparando. Em cada toque de tambor, limpando. Cada palavra que trago é uma folha de cura. Cada assobio, um fio de luz pra puxar quem tá perdido.
O salão vibrou.
O tambor pulsava mais uma vez com firmeza. A fumaça do charuto subia em espiral. Os cantos dos caboclos voltavam a se erguer, formando uma corrente viva de cura e reverência.
Mariazinha olhou em volta e percebeu: aquele terreiro era um organismo. Vivo, pulsante, guiado por seres que haviam conhecido a dor e transformado em caminho.
Ela entendeu, ali, que o sagrado não vem pronto — ele se constrói. Com queda, com aprendizado, com entrega. E Pena Branca, em sua forma elevada, era prova viva de que todo erro pode ser transformado em missão.
Patacos da Alma
Quando a gira se aproximou do fim, Seu José — de volta em sua forma conhecida, meio homem, meio guia — passou as mãos abertas sobre a sua cabeça, a guia pelo corpo de quem ali ficou presente. Em silêncio, pedia aos caboclos que seguissem protegendo, iluminando e orientando cada um nos caminhos da vida.
A fumaça se dissipava aos poucos, como névoa subindo dos vales nas manhãs de serração. Mas o que ficava era mais forte que o cheiro do charuto ou o som do tambor: era leveza. Era paz. Era energia viva circulando no corpo e no espírito de quem esteve presente.
Mariazinha, com os olhos mais calmos e o peito mais solto, compreendeu algo que até então lhe escapava: a vida é feita de pequenos patacos — gestos simples, escolhas diárias, atitudes que muitas vezes passam despercebidas. Mas quando gastos com consciência, com coração e presença, esses patacos viram luz. Viram caminho.
Desceu as escadas devagar, do chão sagrado da casa de Dona Zeza para as ruas tortas do bairro. O mundo lá fora era o mesmo — mas ela, não. Trazia no corpo uma leveza nova. Algo havia se multiplicado dentro dela.
O medo que antes a paralisava, agora dava lugar à confiança. A sensação de abandono se dissolvera em pertencimento. E, onde antes havia dúvida sobre seu valor, agora florescia uma certeza silenciosa: ela era suficiente, do jeito que era, só precisava ter mais sabedoria na vida e não querer ter mais do que se carrega no bolso.
Os patacos do bolso ainda eram poucos. Mas os do coração… esses, quando gastos com sabedoria, se tornavam infinitos. Eram como sementes jogadas nas pedras — e ainda assim, floresciam.
Naquele instante, Mariazinha entendeu: a verdadeira riqueza não é o quanto se tem, mas o quanto se transforma. O segredo está em como se gasta o que se tem — com humildade quando é muito, com coragem quando é pouco.
A vida, no fim das contas, é feita de escolhas. Pequenas. Cotidianas. Mas profundamente poderosas. E ali, entre a escada, o céu e o barro da rua, Mariazinha finalmente soube quem era — e o que vinha buscar já estava, há muito, dentro dela.
Flores que nascem no invisível
Mariazinha deixou o terreiro com as mãos vazias, mas com o coração novo.
Os medos que antes a paralisavam ficaram ali, despidos e dissolvidos em forma de obsessores, entregues à luz dos caboclos.
O mundo lá fora não havia mudado — as ruas continuavam tortas, as contas ainda esperavam, a vida seguia dura. Mas ela, por dentro, já não era a mesma. Carregava agora uma firmeza silenciosa, a certeza de que não caminhava só.
No fim, compreendeu que a vida não se encerra. É fio contínuo que se desenrola em chances: de aprender, de reparar, de recomeçar, de florescer. Seja aqui, no corpo que cansa, ou além do véu, onde o espírito encontra novas moradas.E foi por isso que, ao atravessar o portão, Mariazinha saiu inteira.
Não perfeita, não pronta. Mas inteira — porque sabia, enfim, que o sagrado a acompanhava dentro dela.